COISAS SIMPLES

rita maltez

Categoria: Jorge de Sena

Anoitece

sena humanidade

Copy of jorge de sena coroa da terra

OS TRABALHOS E OS DIAS


Sento-me à mesa como se a mesa fosse o mundo inteiro
e principio a escrever como se escrever fosse respirar
o amor que não se esvai enquanto os corpos sabem
de um caminho sem nada para o regresso da vida.

À medida que escrevo, vou ficando espantado
com a convicção que a mínima coisa põe em não ser nada.
Na mínima coisa que sou, pôde a poesia ser hábito.
Vem, teimosa, com a alegria de eu ficar alegre,
quando fico triste por serem palavras já ditas
estas que vêm, lembradas, doutros poemas velhos.

Uma corrente me prende à mesa em que os homens comem.
E os convivas que chegam intencionalmente sorriem
e só eu sei porque principiei a escrever no princípio do mundo
e desenhei uma rena para a caçar melhor
e falo da verdade, essa iguaria rara:
este papel, esta mesa, eu apreendendo o que escrevo.

Jorge de Sena

A verdura

“O americano tem a obsessão da verdura a seu lado. Para mim, criatura urbana da Europa, a relva é uma instituição municipal que tanto me faz que exista como não exista. Se eu, depois de dar aulas, aturar alunos, participar de reuniões administrativas na universidade, ainda volto para casa para estafar-me a cortar a relva à volta da minha casa, que tempo e que forças me restam para ler e para escrever? Nenhumas. Mas isto é precisamente o mais natural para o americano.”

Jorge de Sena, Testemunho pessoal sobre viver nos Estados Unidos da América (que vale a pena ler, pois tem coisas muito mais interessantes do que esta a que achei, porém, graça.)

Coisas sérias

Independência

Recuso-me a aceitar o que me derem.
Recuso-me às verdades acabadas;
recuso-me, também, às que tiverem
pousadas no sem-fim as sete espadas.

Recuso-me às espadas que não ferem
e às que ferem por não serem dadas.
Recuso-me aos eus-próprios que vierem
e às almas que já foram conquistadas.

Recuso-me a estar lúcido ou comprado
e a estar sozinho ou estar acompanhado.
Recuso-me a morrer. Recuso a vida.

Recuso-me à inocência e ao pecado
como a ser livre ou ser predestinado.
Recuso tudo, ó Terra dividida!

Jorge de Sena

pobre gente tão comum, tão semanal, tão glória de hipoteca, tão de gravata, e graxa no cabelo

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Qual se o mapa fora meu

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Quando, há dias vinha no carro a ouvir falar da publicação de uma tradução de poemas de Emily Dickinson lembrei-me de que tinha um livro de poemas dela traduzidos por Jorge de Sena. Mas… encontrá-lo? Como passo a vida a (des)arrumar livros, bem sei que eles nunca aparecem quando procurados com um objectivo, digamos, racional. 

Consola-me a certeza de que eles acabam por aparecer, quando lhes apetecer a eles ou quando me apetecer a mim. 

Este, apeteceu-nos agora.

sena dickinson

Não foi para isto

Não foi para morrermos que falamos,
que descobrimos a ternura e o fogo,
e a pintura, a escrita, a doce música.
Não foi para morrer que nós sonhamos
ser imortais, ter alma, reviver,
ou que sonhamos deuses que por nós
fossem mais imortais que sonharíamos.
Não foi. Quando aceitamos como natural,
dentro da ordem das coisas ou dos anjos,
o inominável fim da nossa carne; quando
ante ele nos curvamos como se ele fora
inescapável fome de infinito; quando
vontade o imaginamos de outros deuses
que são rostos de um só; quando que a dor
é um erro humano a que na dor nos damos
porque de nós se perde algo nos outros, vamos
traindo esta ascensão, esta vitória, isto
que é ser-se humano, passo a passo, mais.

(SENA, 1989b, p. 135)

Daqui.

Coisas boas

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Jorge de Sena, os Paraísos Artificiais e muito mais.

Outros tempos

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Dos diários de Jorge de Sena.

Reflorir, sempre

Não é já de Natal esta poesia.
E, se a teus pés deponho algo que encerra
e não algo que cria,
é porque em ti confio: como a terra,
por sobre ti os anos passarão,
a mesma serás sempre, e o coração,
como esse interior da terra nunca visto,
a primavera eterna de que existo,
o reflorir de sempre, o dia a dia,
o novo tempo e os outros que hão-de vir.

Jorge de Sena